A palavra sofrência existe. Ainda não está nos dicionários, mas existe. Mais do que um estilo musical, é um estado de espírito. É mistura de sofrimento com carência, sinônimo de dor, calvário, tristeza, melancolia. É dor pelo abandono, estado da alma que faz o homem chorar, é resultado de traição e frustração.
Que momento complicado nós vivemos! Tempos de sofrência. Sente-se o chão fugindo, perdendo a confiança geral. No sistema financeiro, nas lideranças, na presidência, na licitação, na competência das grandes empresas, no ministro da justiça, na controladoria geral, no supremo. Na câmara e senado, nem se fala.
Que tipo de gente é essa? Gente que rouba até o que não pode gastar!? Não venha me dizer que um gerente, gastar 100 milhões de dólares é fácil! Até para esconder é muito difícil, nesses tempos em que botijas estão fora de moda. É complicado guardar, até no paraíso. Incríveis são esses paraísos fiscais. Lugares ricos. Têm tudo do bom. Tem coisa ali que só faz quem tem dinheiro fácil, pois com dinheiro suado é diferente. Fico imaginando quantos ditadores africanos depositam o produto de seu roubo em contas secretas. Quantos brasileiros, 8667 só em um banco, suponho que com exceções, depositaram o produto desviado da sua administração de estatais, prefeituras, governos.
Penso que, antes de usufruir, muitos são fulminados por um golpe de estado ou por um fatal e merecido infarto do miocárdio, sem direito a apelar para ministro. Fica um volume de dinheiro incalculável, sobrando nas contas numeradas, sem herdeiros, sem esposas, sem amantes, sem sócios, sem retorno. Fica lá, dando sopa, secretamente. Assim, até eu fico rico, faço do meu país um modelo de desenvolvimento, faço túneis de mais de 50 km na montanha, cubro as estradas, dou escola boa. Eles nem precisam roubar. Os pobres roubam para eles. Apenas guardam e usam o produto do roubo, fazendo de conta que receptação não é crime.
Que povo atrasado, esses do terceiro mundo, sem educação, sem saúde, sem cultura, dizem. Mas como têm dinheiro esses pobres! A lei é muito rígida e impede questionar a origem e o proprietário? Lei dura, mas ética e moralmente nem tanto. Cofre cheio, é o que vale. Antes o primeiro mundo levava pau brasil, diamantes, ouro. Agora leva dinheiro mesmo. Produto do trabalho e impostos de milhões de pobres pelo mundo a fora, chega líquido e certo nas contas secretas.
O pior é que, quando se descobre, quem primeiro perde o emprego é o pobre. Quando vem o aperto para equilibrar as contas, quem começa pagando é o pobre. É danado, se ao menos tivesse participado da festa!
Cabe um estudo sobre as personalidades. Sei de alguns que fizeram de tudo, a margem da lei, para construir patrimônio, mas, a certa altura, conferiram legalidade aos negócios, de forma que seus filhos se orgulham dos pais, sem atinar para origem traquina. Tem os que seguem no roubo e conseguem educar os filhos na mesma cartilha. Ensinam a usar notas frias, a assumir ares de gestor honesto, enquanto recebem propinas de todos os lados. Ensinam os filhos a roubar, fazem disso a tradição e brasão da família. Por vezes são apanhados, alegam injustiça e a tal da perseguição política.
Todos sabem como operam. Pensando bem, sempre soubemos. Nas conversas, nas entrelinhas, nos bares, inconfidências e, agora, nos depoimentos e delações. Causou espanto, de toda maneira, a forma sistemática e o volume, assim como a cara de paisagem de quem deveria mais se indignar e tomar providências.
Puxa! Como podem as pessoas que um dia se colocaram em risco “pelo povo brasileiro”, permitir, tolerar e, quem sabe, participar de um saque dessa proporção, quando todo mundo sabe que, isso sim, mantem um povo na miséria, na ignorância, na injustiça. Como essas pessoas desperdiçaram a rara oportunidade de entrar para a história como responsáveis pela revolução política, econômica, cultural e social do país, tão sonhada, tão discutida nos bares e assembléias. Como jogaram fora todo um ideal, todo um significado para suas vidas e elegeram o lixo da história como seu destino!? É incrível!
Um dia, nas salas de aula, o netinho e a netinha, irão tomar consciência que seu avô ou sua vovozinha, prevaricou, se omitiu, se corrompeu, atentou contra o avanço social que tanto pregava. Roubou.
Dizer agora que são iguais aos ladrões do passado é se colocar na vala comum e não me consola. Saber que são os ladrões do presente, é o que conta. Traíram minha confiança. São uns sem vergonhas que me deixaram em estado de sofrência sem fim.
Da outra vez em que me senti assim, era muito jovem e pelo menos embalava a dor com músicas de melhor nível e letras de onde extraia sentido político e alguma esperança. Agora, tento, mas o estilo “sofrência” ultrapassa os limites. A melodia, melhor não comentar. Também é difícil conseguir sentido em Bilú Bilú, mas se é para ter esperança, o que poderia querer dizer o cantor símbolo do ritmo, na estrofe do principal sucesso do sofrência: “você foi a culpada desse amor se acabar, você que machucou meu coração, me fez chorar e me deixou num beco sem saída…?!”