Google e Facebook têm estimados 50% de todo o mercado de publicidade digital no mundo, com nenhum outro player passando de 5% da fatia de mercado. Em um universo onde a informação sobre o usuário é diretamente ligada à capacidade de direcionar a publicidade correta, e faturar em cima disso, converter as conversas das pessoas em informação publicitária de maneira bem sucedida seria extremamente lucrativo.
Mas nos escutar exigiria um pressuposto tecnológico: a existência de capacidade técnica para ouvir, interpretar, filtrar palavras-chave, classificar e enviar as conversas pela rede (o que inclui usar o pacote de dados de celular ou a rede Wi-Fi). Tudo isso com as cerca de 2 bilhões de pessoas que compõem a plataforma do Facebook ou os 2 bilhões que têm o sistema operacional Android, do Google. O algoritmo de audição ainda teria de entender português, uma língua falada por não mais de 300 de milhões de pessoas.
Fatemeh Khatibloo, analista da companhia de pesquisas digitais Forrester, uma das mais respeitadas dos Estados Unidos, realizou um estudo sobre o caso depois de ouvir de mais de 20 colegas que conversas feitas na vida real — em inglês — aparentavam gerar anúncios no Facebook. A conclusão certamente não é a esperada dos adeptos de teorias conspiratórias. “O processo de filtrar linguagem natural já é difícil na melhor das circunstâncias; adicionando limitações de dados e barulho de fundo, isso se torna material para ficção científica”, escreveu ela em artigo na revista Forbes.
Khatibloo levanta outro empecilho para que aplicativos e aparelhos nos ouçam secretamente. Cerca de 24% da população adulta americana já baixou um bloqueador de propaganda em seus navegadores de internet e a descoberta de escutas ilegais colocaria o mercado de publicidade digital em risco, segundo Khatibloo: “O ambiente de marketing digital só pode aguentar um determinado número de violações de privacidade antes de entrar em colapso”.
O risco para as empresas
Se o público poderia ficar incomodado com um aumento da vigilância, os anunciantes também podem virar vidraça. Para o presidente do grupo de mídia Dentsu Aegis Network no Brasil, Abel Reis, a publicidade é baseada nos dados e registros de atividades que são coletados somente com explícita autorização. “Eu duvido 100% que uma grande companhia aceitasse fazer uso de dados captados sem autorização e ciência das pessoas. Os anunciantes têm cuidados com escândalos e demandam segurança e legitimidade na captação de dados”, afirma. Saiba mais: Veja com a WorldSense como a Inteligência Artificial está mudando a publicidade online Patrocinado
A revista Exame procurou o Facebook, que negou quaisquer violações de sua política de dados, afirmou que esse é um boato de internet e disse que qualquer usuário pode ver o motivo pelo qual está recebendo uma propaganda específica. “O Facebook não utiliza o microfone do telefone das pessoas para informar sobre anúncios ou mudar o feed de notícias. Mostramos anúncios com base nos interesses das pessoas e outras informações de perfil — não com base no que elas estão falando. Apenas acessamos o microfone dos telefones das pessoas quando elas estão utilizando ativamente alguma ferramenta específica que requer áudio e somente quando autorizam a utilização, como por exemplo gravação de vídeos”, afirmou a companhia em nota.
O Google informou que não utiliza o áudio dos usuários para direcionar publicidade, apenas para aprimorar o funcionamento do assistente de voz. “As entradas de áudio e voz, por exemplo, o comando Ok Google são armazenados para ajudar e melhorar no reconhecimento de voz e de fala do usuário. Para nós, é fundamental que o usuário esteja no controle e tenha transparência sobre os dados gerados ao utilizar nossos produtos e serviços.”
De acordo com Frederico Silva, diretor da divisão latino-americana de engenharia de software da fabricante de processadores Qualcomm, uma das maiores do mundo, por uma questão de ganho de bateria os dispositivos selecionam palavras-chave a serem escutadas. “Nós criamos tecnologia para ajudar o usuário. É possível processar captação de áudio, mas os direitos e deveres sobre isso é de quem constrói a aplicação. Nós habilitamos o uso das ferramentas e fica a cargo das companhias fazer o melhor uso disso”, diz.
A Apple, fabricante do iPhone, atesta nos termos de uso de sua loja que “as funcionalidades de um app devem estar claras para todos os usuários finais”, caso contrário o desenvolvedor do aplicativo fica sujeito à exclusão da loja virtual. Contatada e questionada sobre a viabilidade técnica de seus celulares estarem nos escutando, a fabricante Samsung informou que “proteger a privacidade dos consumidores e a segurança dos nossos produtos é uma das principais prioridades da Samsung. Se encontrarmos um risco [à segurança do usuário], cuidamos disso imediatamente”.
O Google também informou que promove varreduras de segurança constantes em sua loja, a Google Play, para retirar do ar aplicativos que violem o código de conduta da empresa e que façam uso de informações sem autorização prévia do usuário.